30 de novembro de 2015

Resta-nos ser livres

Há 80 anos morria o génio. 
Na altura, ninguém que por ele passava sabia quem ali estava. Não conheciam as personagens que lhe massacravam as noites, não sabiam das cartas que o alimentavam nem sabiam das verdades que se escondiam naquele baú de madeira. 
Naquele 30 de Novembro de 1935, marcaram-se, numa folha de papel velho, o nome e a hora de um génio, como faziam com qualquer outro protagonista da morte. Não sabiam, na altura, que aquele corpo era vítima de si próprio e que o papel dele era tudo o que a vida lhe queria. Ninguém sabia, naquele hospital, que aquele génio ficaria vivo até aos dias de hoje.
Ele escrevia para ser livre mas só conseguiu ser recordado. Recordado por todas as vidas que criou, por todos os sentimentos que escreveu, por todos os estados de alma que tinha e por apenas um amor. 
Fernando Nogueira Pessoa fazia hoje para ser recordado amanhã e nós, tal como ele nos diz na última frase que escreveu*, não sabemos o que o amanhã trará. Resta-nos ser génios de nós próprios, resta-nos ser livres, resta-nos fazer hoje para, quando o nosso nome for escrito no papel velho do hospital, sermos recordados por aquilo que de mais simples fizemos em vida: Termos sido livres.


* "I know not what tomorrow will bring"
29 de Novembro de 1935 



Fernando Nogueira Pessoa
(13 de Junho de 1888 - 30 Novembro de 1935)

Adeus

12 de novembro de 2015

As filhas bilingues

Dezassete e cinquenta e dois, alfa, sentido Lisboa-Porto.
Duas irmãs, entre os sete/nove anos e com diferença de um ou dois entre elas. Vestimentas iguais, cor-de-rosa choque e, nos peitos, um "RL" - presume-se que sejam as iniciais da Ralph Lauren. Falam pelos cotovelos e falam em duas línguas. Inglês do Reino Unido e um português de Portugal com um sotaque a inclinar para o português do Brasil. A mãe, cabelo negro, olhos do mesmo tom, pele ligeiramente morena, claramente de origem indiana e fisicamente igual a Mindy Kaling. O “vovô” e a “vovó”, como as pequenas lhes chamam, nos bancos ao lado. Estes avós são portugueses. Ele lê o Expresso e ela, enquanto coloca vaselina à volta dos olhos, lê a Maria. Nota-se o sotaque do norte quando perguntam às netas se querem o lanchinho que lhes trouxeram. As irmãs falam alto, e muito, não fossem elas crianças bilingues. Misturam o inglês com o português enquanto discutem quem adivinha as respostas de um jogo de traduções. Espalharam as folhas e as canetas na mesa dobravel do comboio, que haviam tirado da bolsa roxa que gritava o fenómeno Violeta, o qual, percebo agora, também chegou ao Reino Unido. Se a mãe ajuda nas respostas… elas gritam logo: "Pára de guess, pára de guess!". O vovô pede-lhes para falarem mais baixo mas pouco lhe adianta, até porque o jogo está a ficar divertido e o resto da carruagem já está a aceitar o nível dos decibéis.
Atrás de mim está alguém ao telefone, a falar de programação, projetos e versões de alguma tecnologia qualquer. Não conheço a pessoa mas não me vou atrever a virar o pescoço a 180 graus só para poder associar uma cara à voz que já estou a ouvir há uma hora. Longe de mim estar a furar onde não devo mas os meus ouvidos são livres e o meu cérebro acompanha-os. O discurso faz dele alguém eloquente, assertivo, rigoroso e profissional. Fala da sapo, da galp e de produtos importantes que pediram à empresa onde ele trabalha. Enquanto, por um lado, grita estrangeirismos tecnológicos, por outro, solta um “pá” e “gajos” mas nada disso faz dele menos credível. Uma das crianças, após tanta jogatina com a irmã e com a mãe Mindy, decidiu ficar enjoada. Enquanto trocam de lugares entre elas, a televisão mostra uma aula de ioga para cães. A criança decide piorar do enjoo e a mãe Mindy, como mãe coruja que é, vai procurar um saco para a filha bilingue vomitar. Toda a carruagem ouviu a viagem do almoço da menina para o saco que a mãe encontrou. Enquanto o almoço saía, os “upgrades do gajo” de trás estão a “correr muito bem” para que “já na segunda feira se façam os testes”. O vovô português está preocupado com a neta e a vovó já dorme; aquele dormir que só as avós têm. Aquele dormir em que, ao serem acordadas, afirmam que não estavam a dormir e que estavam "a ver a novela".
O meu vizinho do banco está a ler Pedro Mexia e, lá atrás e provavelmente ao lado do “gajo” da programação, está um casal de italianos. Oiço-os a falarem de pizza e de massas com molho de tomate. Mentira. Não é disso que falam, pelo menos fora do meu cérebro. As crianças bilingues já acalmaram, o vovô está quase a terminar o jornal, o programa de ioga para cães já acabou, o programador continua a sua reunião via telefone e eu…eu estou prestes a ir buscar um saco para mim, bem parecido com aquele que a mãe Mindy foi buscar para a cria.

Adeus