14 de abril de 2015

A Pequena aldeia de Marlón

II

O sol ainda não tinha espreitado e já Fospício e Patrício comiam as sopas de vinho.
Com os ante-braços estendidos sobre a mesa antiga de madeira, faziam-lhe aparecer sombras em movimento, de cada vez que levavam a colher à boca. O chilrear dos pássaros na árvore da entrada da casa, o engolir das sopas e o chiar da madeira já podre da mesa eram os únicos sons ouvidos àquelas horas.
Lídia, que teria sido a primeira a levantar-se para preparar as sopas, já havia lavado a roupa do filho e do marido, que tresandava a uma semana de peixe e a água salgada. Lídia ia para a ribeira com um cesto ainda a aldeia estava a dormir. Quando regressava a casa, preparava-se para estender nas árvores a roupa que tinha lavado na água doce. Daquela maneira, mal o sol nascia e já as vestes da toda a semana estariam a secar. Fospício e Patrício terminaram as sopas e logo correram para o pequeno barco de madeira. Era mais um dia que prometia ser bom para a pesca ao atum.
Nesses últimos dias o mar havia sido muito simpático para a família Verbitium e para o resto de toda a aldeia. Falavam de uma maré vinda do norte do Pacífico e, quando o norte vinha à conversa, centenas de atuns passavam ali na costa. A palavra "norte" era como uma dádiva para a aldeia, significava dias de atuns frescos e refeições garantidas. Quase toda a aldeia festejava quando uma maré vinha do pacífico-norte. Enfeitavam as casas com lenços azuis, em honra à Padroeira de Esmeraldas, e faziam banquetes ao ar livre, debaixo das árvores. Os Verbitium, os Rondas, os Salves e os órfãos reuniam-se no centro da pequena aldeia de Marlón, dançavam e cantavam enquanto assavam os atuns que os Verbitium tinham pescado pela manhã. Espetavam o peixe em paus de madeira e metiam cada uma das pontas dos paus em cima de pedras, as quais estavam distribuídas por toda a fogueira, em forma de círculo. Todos os marlóenses dançavam com as espetadas de atum na mão. Havia muito vinho e nem o pôr do sol dava ordem para terminar a festa. 
Os Areijos, a família abastada da aldeia, evitavam juntar-se com as outras famílias. Os Pais Areijos, Ambrósia e Henrique, não suportavam a ideia de um dos seus filhos conviver com os órfãos da aldeia.
- Olha para aqueles ajuntamentos desnecessários...um lugar cheio de órfãos a dançar! Eles só têm as roupas que trazem no corpo! Não têm as nossas terras, não têm uma banheira, nem sequer têm carroças de cavalos! Eles não têm nada! São órfãos! Como é que conseguem ser felizes? Perguntou Henrique.
- Não sei, meu marido. São loucos. Ninguém filho do Senhor consegue estar tão feliz sem nada nos bolsos. Só podem ser loucos. Deus perdoa os loucos...eles não sabem o que fazem nem sequer o que dizem. - Respondeu Ambrósia.
- Não quero nenhum dos nossos filhos naquele ajuntamento....Imagine, um dos nossos herdeiros a dançar ao lado de um órfão! Ou pior, ao lado dum órfão do padre de Penicas! Que ultraje! - dizia Henrique.
- Oh, meu rico marido, Deus nosso senhor não deixaria! - Respondia Ambrósia.
O sol pôs-se e ninguém quis regressar a casa. Os órfãos, agora loucos, e o resto dos marlóenses continuavam a assar atuns e a dançar. Henrique e Ambrósia já tinham recolhido e estavam prontos para fazer as rezas antes de se deitarem. Rezavam para que nada acontecesse à sua família. Mal eles sabiam que seis dos seus quinze filhos e quatro dos seus vinte e três empregados se tinham escapado para a festa. Afinal, eram marlóenses e gostavam de ser loucos por um dia.

Adeus

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